Se um viajante numa noite de inverno...
No segundo episódio de Transitar, série do meu podcast Tríplice Fronteira, invoco a companhia de Calvino e Borges para refletir sobre o pensar e a importância de certa disposição errante
O protagonista compra o mais novo livro de um de seus autores prediletos. Ao iniciar a leitura, deleita-se com a narrativa eletrizante do que promete ser uma boa história de suspense e intrigas. Contudo, a leitura é interrompida na página 30, para a sua grande decepção. O exemplar adquirido parece ter vindo com defeito de impressão, pois o restante do volume consiste de páginas em branco. O leitor retorna à livraria onde o comprou e consegue trocá-lo por outro exemplar. Volta para casa, apoltrona-se, abre o livro e se depara com uma história completamente diferente da que tinha começado a ler. No restante de Se um viajante numa noite de inverno, conto de Italo Calvino, perseguiremos o leitor ávidos por descobrir, junto com ele, o resto da trama que tanto lhe instigou. São várias narrativas construídas com maestria dentro de diversas outras narrativas. Um fractal literário.
As narrativas que Calvino desdobra no conto são de certo modo inacabadas. Nenhuma segue uma orientação linear, cronológica ou de outro tipo qualquer. São vários os mistérios a serem desvendados, mas o pobre Leitor e nós, seus leitores, somos a todo momento levados não a respostas, mas a outra história, com suspense próprio. Apegados ao suspense e à necessidade de buscar respostas, não somos capazes de sair da experiência fractal em que Calvino nos envolve.
Adoro esse conto de Calvino, uma estetização muito bem acabada da própria leitura como experiência fractal. Narrativas como a de Calvino portam aberturas para vários mundos, soluções contingentes, bifurcações, universos paralelos. O próprio livro me evoca um dos meus contos favoritos de Borges, O Jardim das Veredas que se Bifurcam.
No final de dias outonais, veredas que se bifurcam trazem à mente uma árvore cheia de galhos, árvore de inverno, galhos secos. Mas não é uma árvore qualquer. Trata-se de árvore cujos galhos nascem e se separam uns dos outros ao infinito, de tal modo que se olhássemos apenas para uma parte dela, da árvore, enxergaríamos o todo. Isso, claro, se o nosso olhar nos permitisse enxergar no pedaço a totalidade, sem se apegar a um galho em especial. A imagem que descrevo é mais ou menos a definição de um fractal, objetos fascinantes e ubíquos na natureza.
O problema é que nosso olhar costuma se ater aos galhos, ou, no caso das narrativas, a buscar a solução do mistério, o desfecho, o fim. Mas tem sentido buscar caminho num fractal como se nos encontrássemos num labirinto? Muitos de nós nos contentamos sobretudo com o fim e, no processo de alcançá-lo, deixamos de curtir o caminho que percorremos até ali. Deixamos de lado a possibilidade de nos perdermos em narrativas inacabadas que se multiplicam aos nossos olhos e nos ampliam o campo de experiências, sensoriais e intelectuais. Deixar-se perder é uma delícia!
Nessa pandemia, tenho feito a experiência de me perder. Estou a fazê-la aqui, agora, neste momento. Não planejei as palavras que iam sair, apenas deixei que saíssem. Deixo que saiam. Para não deixar o carro parado por muitos dias, também tenho saído por aí, sem destino, errando pelas ruas, observando a mudança das árvores: as cores do outono, as folhas que se vão, o desnudar dos galhos secos. Aí volto à bifurcação do conto de Borges e ao fractal literário de Italo Calvino. Em várias dessas empreitadas automobilísticas, fui entrando em ruas, depois em ruelas, depois em ruas sem saída, apenas para retomar o caminho original, virar para o outro lado, e seguir. É verdade que, tendo um celular com sinal de internet, perder-se mesmo, de verdade, não acontece. Mas a sensação de que poderia acontecer já é eletrizante. Um dia desses deixo o celular em casa.
A experiência da liberdade é, entre outras coisas, a da possibilidade de se perder, inclusive na leitura de contos, essas narrativas sempre inacabadas que deixam múltiplas possibilidades em aberto, como um galho que nasce do galho que nasce do galho. E essa imagem que faço da liberdade torna a experiência nas redes sociais muitas vezes labirínticas para mim. Nelas a ninguém é facultado se perder. Ao contrário. Para estar nelas somos compelidos a nos acharmos de alguma forma, a nos conformarmos ao padrão de como os outros acham que somos, de como nos percebem, de como nos enxergam. Caso nos recusemos a sucumbir a essa versão muito contemporânea de tirania, estamos fadados a virar pária, mais cedo ou mais tarde. Não teremos seguidores, não receberemos curtidas. Como viver nas redes sem curtidas? Pior, como viver sem curtidas? Sem as mãozinhas, sem o turbilhão, a balbúrdia, a validação que estranhos nos conferem? Como viver de um modo em que ninguém determina o que fazemos, o que podemos ou não escrever? Como viver sem o temor do cancelamento? Pois, sejamos sinceros, quem está em rede social muitas vezes tem algum temor de cancelamento, sim, por mais que a ideia seja completamente estapafúrdia, dado que pessoas não podem ser canceladas por outras, apenas por elas mesmas, se é que o termo se aplica.
Dá para perceber, não? Cansei das redes. Nas redes não cabe sair por aí como bem entender. Elas consomem o tempo, reduzem o alcance da visão. Paradoxalmente, encurtam o horizonte, embotam – e cabeça embotada não consegue pensar. Melhor que acertar a saída de um labirinto em que nos enredamos é errar, perder-se em fractais, especialmente literários.
Percam-se.
As rotinas também são fonte de liberação. Perder-se é iludir como quem não faz movido pelo curso do curioso. Paris Hilton ilustra a mistura da cidade do trottoir e do cigarro. Carrego a solidão dos quartos de hotel. Borges não era Sartre, era um velhinho que apreciava as histórias de mulheres perdidas. O frio do general com suadade do correio. As cartas hoje não chegam no portão, mas felizmente fico com Hookers. John Lee. Prima Hayway. In: ensaios de um corionha rezando seu terços.. Ave Maria.
Monica, finalmente consegui escrever algo pra vc. Como não sou assinante pago em seu podcast socioeconomicoliterariohistoricohumanistaetudodebomquevocetrazefazecompartilha, digo que adoro ouvir suas digressões, ideias, caminhos, veredas, possibilidades, multiversos. Seja o dia e hora que for, saiba que sigo você. Confesso que não acompanho podcast, mas estou adorando ouvir e ler você.
Quanto ao Manguel que vc indicou, é uma maravilha, Manguel mesmo era auxiliar do Borges, como deve saber. Adoro TUDO dele. E a Biblioteca da Meia Noite remete sim a Borges, Calvino, Philip K. Dick... E me lembrei na hora de Sonhos de Einstein, do maravilhoso Alan Lightman. E tantos outros... Milorad Pavic, Margareth Atwood, Musil...