Serendipity
O começo da história de como eu me tornei tradutora do best seller global "O Capital no século XXI", de Thomas Piketty
Adoro a palavra “serendipity”, e isso por ao menos três motivos: (a) ela é sonora, desliza pela ponta língua de forma deliciosa; (b) significa “acaso”, mas não qualquer acaso, e sim um acontecimento fortuito e sempre auspicioso, uma coincidência feliz; (c) por fim, como “saudade” em português, ela não tem tradução perfeita. E a série do meu podcast, o Tríplice Fronteira, que este artigo inaugura é sobre tradução: a tradução do livro O capital no século XXI, de Thomas Piketty, do francês para o português, bem como a tradução de ideias econômicas para um público não especialista.
Por que uma sequência de episódios sobre o livro de Piketty? Bem, ele é grande. O original conta mais de 900 páginas e a edição brasileira com mais de 600. Além disso, o tema de que trata, a desigualdade de renda e riqueza no mundo, é complexo, repleto de camadas e nuances. Lançado originalmente em 2013 e logo traduzido para o inglês, o livro ganhou as manchetes dos jornais por se transformar rapidamente num best-seller global, o que é muita coisa em se tratando de um livro de economia. Não tenho dúvida de que a magistral tradução para o inglês o ajudou a alcançar uma audiência ampla, e seu amplo alcance contribuiu muito para alavancá-lo e torná-lo um material sobre o qual economistas e não-economistas resolveram se debruçar, desbravando suas centenas e centenas de páginas. Como fenômeno literário, o primeiro de uma série de livros para não especialistas que abordariam o tema da desigualdade de formas variadas, não surpreende que O capital no século XXI tenha agora se transformado em filme.
No Brasil, o livro foi traduzido por mim em 2014 e publicado no mesmo ano pela editora Intrínseca. A história de sua tradução se entrelaça com a minha própria. Como virei tradutora desse livro? Por serendipity. No finalzinho de 2013, se não me falha a memória, tive uma conversa com o pessoal da Intrínseca. Na época, já estava trabalhando em Como matar a borboleta azul, meu livro sobre a era Dilma, e tinha acabado de saber que em poucos meses retornaria aos Estados Unidos de modo definitivo. Estava cansada do debate econômico no Brasil, o que é uma espécie de condição permanente, mas que atinge picos de saturação.
A Intrínseca havia adquirido os direitos autorais para tradução e publicação do livro, um golaço em se tratando da obra de não-ficção mais badalada mundialmente. Havia algumas opções de tradutores. Nenhum dos nomes cogitados, no entanto, tinha trabalhado antes com economia - a maior parte tinha traduzido estudos em direito ou psicanálise -, de sorte que a editora precisava de alguém para fazer a revisão técnica do livro. Estavam considerando a contratação de dois tradutores, pois entendiam que a extensão da obra e o pouco tempo para traduzi-la requereriam esforço redobrado.
Combinamos que os capítulos seriam entregues a mim um a um, na medida em que as traduções fossem ficando prontas. Sim, aceitei o desafio com uma mudança internacional para preparar e outro livro para escrever. E o aceitei porque sabia que, com tanta coisa para fazer, não sobraria muito tempo para me aborrecer com o debate econômico brasileiro. Aborrecer toma tempo, e desse luxo não desfrutaria: entre escrever meu livro, planejar a mudança, tocar a minha empresa de consultoria, dar aulas, escrever os artigos do Estadão e ainda por cima me aventurar a elaborar meus próprios contos… Bem, acho que dá para ter uma ideia do que falo. De todo modo, costumo enterrar aborrecimentos com projetos diversos. É um hábito antigo e tratarei um pouco mais dele nos episódios seguintes.
A mudança não seria fácil. Meus filhos ainda eram pequenos e teriam de se habituar não só com um novo país, novo idioma, novos amigos, mas com a experiência de viver longe das avós. Como a mudança era definitiva, precisava pensar em comprar uma casa, não viver de aluguel. Enfim, havia muito o que resolver. Mas aceitei ser a revisora técnica do livro de Piketty. Comecei a lê-lo em francês, bem como a tradução para o inglês. Ah, a tradução para o inglês! Como uma boa tradução é capaz de mudar um livro por completo...
Serei franca. O original não era bem escrito. O livro e a temática eram instigantes, sem dúvida. Mas a prosa? A forma? Sempre valorizei teor e forma. Forma não é adorno. Forma é o que dá vida à obra, seja ela qual for. A forma do livro no original não estava à altura da importância do tema, nem das pesquisas desenvolvidas por Piketty em que sua análise se baseava.
O tradutor para o inglês, Arthur Goldhammer, é professor de Harvard, tradutor de Alexis de Tocqueville, de Émile Zola, de Albert Camus. Goldhammer transformou o livro de Piketty, sobretudo a introdução (a introdução de O capital no século XXI será tema do próximo episódio do podcast). A tradição no Brasil, contudo, é outra. Não é costume dar nova forma a uma obra traduzida. Tradicionalmente, valorizamos a fidelidade ao original. Aguardava, assim, ansiosa as laudas dos tradutores para ver o que fariam com aquelas páginas, centenas delas, a começar pela introdução. Eu confesso: foi a tradução dessa obra para o inglês que me fisgou de imediato.
Passaram-se algumas semanas desde a conversa com a Intrínseca. Eu continuava trabalhando no meu próprio livro e arrumando a vida. Tinha planejado uma viagem a Washington para procurar casa. Ia às minhas aulas de literatura e escrevia os meus próprios contos. De manhã cedo, saía para correr na praia. Os dias passavam e nada de páginas.
Até que elas começaram a chegar. Pedaços da introdução traduzidos por pessoas diferentes. E de cara ficou evidente o problema. Não, o problema não eram as pessoas diferentes. Ambas eram tradutoras tarimbadas, com larguíssima experiência. O problema eram os termos, os termos econômicos que apareciam já, de cara, no primeiro parágrafo.
De imediato me debrucei sobre aquelas páginas para consertar a tradução dos termos econômicos. É muito difícil traduzir um livro de economia quando não se conhece a linguagem da disciplina, e é mais difícil ainda o fazer de forma a tornar o livro acessível. A tradução para o inglês, nesse aspecto, havia sido primorosa.
Depois de alguns dias de trabalho, mandei a minha revisão para a Intrínseca com todas as marcas. Parágrafos inteiros haviam sido reescritos, o texto estava repleto de observações, comentários, sugestões. Foi quando me perguntaram: “Monica, porque você não traduz o livro?”.
Pois é, por que não? Serendipity.
Aguardem os próximos episódios.