O pensamento como mercadoria?
Neste ensaio reflito sobre o pensar em tempos de comunicação de massa
Em A condição humana (1958), Hannah Arendt usa a metáfora de uma mesa para dar uma imagem do público como um espaço em que estamos, ao mesmo tempo, reunidos e separados. A mesa nos une na medida em que ao seu redor nós nos sentamos e discutimos. A ideia não é chegar a qualquer tipo de visão comum ou consenso, mas ouvir e pensar em conjunto, aproveitando a separação que a própria mesa também proporciona. Com a mesa entre nós, não caímos uns sobre os outros. Sem a mesa, diz Arendt, as pessoas cairiam umas sobre as outras, e, podemos acrescentar, o debate público, cujo princípio é a troca, não a sobreposição nem a unificação de ideias, se dissolveria.
Em uma sociedade de massas a mesa, que é uma condição para o debate público, desaparece. A vida privada, que Arendt descreve como um espaço de retirada do mundo, de recolhimento, é uma condição fundamental para o pensamento que as massas e a centralidade das mídias na vida contemporânea debilitam. A filiação a uma instituição de ensino ou de pesquisa asseguram, na sociedade de massas, condições para a liberdade de pensamento. Essas condições, hoje, podem ser comprometidas pelo engajamento direto com o público. Mesmo no caso de quem se dispõe a pensar publicamente, os engajamentos expõem de muitas formas. Com o tempo, o público passa a projetar anseios e fantasias sobre a pessoa que vê, a desejar maior proximidade, a construir a ilusão de tê-la. Alguns tentam tornar essas fantasias realidade, ocupando espaços de privacidade sem que o percebam.
Dos fatores que levam a esse estado de coisas, um é que o público, crescentemente ligado a mídias sociais e plataformas, trata o pensamento como mercadoria. As moedas de troca oferecidas são a admiração, as curtidas, as fantasias e desejos de intimidade com quem aparece no espaço público. Esses afetos são, via de regra, exagerados. Ao mesmo tempo em que há ódio e “haters”, perseguidores que tentam desqualificar, “cancelar”, ou fazer chacota da pessoa que se expõe para oferecer a sua reflexão em público, há “fãs” e “adoradores”. Fãs e adoradores mercantilizam o pensamento. São eles também, os formadores de “fã clubes”, que podem acabar afastando das mídias alguém que antes as usava para refletir. Os “haters” podem ser bloqueados, ignorados. Os “fãs”, ao não compreender o papel nocivo que acabam exercendo sobre a pessoa exposta, são mais difíceis de conter.
A relação que se estabelece entre a pessoa pública e seus admiradores é pautada pela seguinte racionalidade: se eu parei meu dia para escutar seus pensamentos, se estou aqui elogiando e dizendo o quanto lhe admiro, você me deve algo em troca. Vêm os pedidos: hoje quero que você fale sobre isso ou aquilo; faça vídeos mais curtos; trate desse ou daquele tema da próxima vez. Vêm as cobranças: estou sempre aqui no canal, mas você nunca responde as minhas perguntas; mande um “oi” para mim; hoje é meu aniversário. Me note! Me veja! Enquanto isso, na tela do chat vê-se de tudo. Fosse uma sala de aula, a maioria receberia advertência. Inevitavelmente, vem aquilo que poucos percebem ser invasivo, constrangedor para quem fala, inibidor da vontade de pensar alto: “a sua voz é muito necessária”; “não nos abandone”; “somos seus fãs”; “estamos com você”; “você é (escolha um adjetivo devidamente exagerado)”. Caso seja mantida a ilusão de que essas manifestações tornam o pensamento livre em vez de amarrá-lo àquilo que se quer ouvir, está construído o caminho para que aquilo que começou como reflexão passe a ser entretenimento, não muito diferente de um reality show.
Tratar dessa forma o pensamento é uma deturpação. Sacrificam-se as condições do pensar e seu próprio sentido, a liberdade, para agradar as massas.
Se alguém ainda não entendeu, foi por isso que encerrei meu canal no YouTube. Não foi por causa de ataques, ou de linchamentos virtuais. Jamais foi necessário enviar mensagens com os dizeres “fique bem”, como se algum sofrimento causado por estranhos fosse possível. Não. O motivo do término do canal foi a redução do espaço para o livre pensar proveniente do efeito das massas sobre o que se pretendia conteúdo. Sem a mesa, a multidão caiu sobre si e abafou o resto.
Monica, um dos melhores títulos de revista é da PUC-RIO: "O que nos faz pensar". Essa é a maior missão de uma revista acadêmica. Pelo seu texto, esse era e é o seu desejo: fazer pensar. De fato, o canal no Youtube, mesmo os seus textos na grande mídia, não conseguem cumprir essa tarefa: fazer pensar. Porquê? Resposta óbvia: o fã não troca "logos", argumentos. Ele simplesmente bate palma. O adversário quer te destruir, não argumentar. No limite, Youtube, artigos (não sei até que ponto o Twitter pode cumprir essa tarefa de espaço de discussão com sua limitação de toques) não podem conformar espaços de debate. O problema não é Mônica e sim a ausência de uma esfera pública de debate.
Isso me remete à noção de 'isegoria', que implicava num espaço para o debate (a Ágora), mas também sujeitos dispostos a isso, a trocar os 'lógos', dispostos a pensar em público.
Enfim, entendo sua posição, mas no Brasil esse espaço para pensar, onde nossos argumentos sejam tensionados está restrito a pequenos grupos na academia ou coletivos, esses em geral pouco acessíveis, que formam 'igrejinhas' com forte tendência ao sectarismo. Talvez nos EUA haja uma 'esfera pública' para o debate. Mas aqui, anos de hegemonia de uma mídia estúpida, um formação intelectual de baixo nível, pseudos intelectuais que se recusam ao debate, enfim, inúmeros fatores geraram o que chamo de cultura da "lacração" e do cancelamento (parece que estamos vivendo "O sobrinho de Rameau" de Diderot, na qual o exibicionismo era a meta). Nada mais obscurantista do que essas atitudes.
Dito isso, o desafio posto é fazer o Brasil pensar (não digo pensar de novo), fazer com que se instaure um "debate público" verdadeiro, aberto, com regras, na qual os argumentos sejam tensionados, submetidos à verificação de validade, questionados honestamente, contra argumentados.
Você tentou, contudo viu o tamanho da encrenca. Todavia o desafio se mantém: pensar, fazer pensar e construir um esfera pública para isso se realizar.
Estou aberto para conhecer um lócus desejável como esse e, se possível, poder participar.
"Tá difícil!!!".
Saudações
José Antônio
Monica,
Qd fui fazer Filosofia na Puc, recentemente, (tinha 70 anos) uma professora me disse: vais perder muitos amigos...
Aconteceu.
Você é necessária ,nos ajuda a pensar melhor o Brasil .
Obrigada