O absurdo no real
Neste artigo, retomo um ensaio de George Orwell para pensar a potência do absurdo no real em tempos de realidades absurdas
O escritor observa os passos do homem condenado em direção ao cadafalso. Havia chovido e o chão estava úmido. No caminho o condenado, que seria enforcado em alguns minutos, não mais, desvia-se de uma poça.
A cada passo os músculos deslizavam de volta ao lugar, os cachos de cabelo sobre o couro cabeludo subiam e desciam numa dança, os pés se imprimiam no cascalho molhado. E uma vez, apesar dos homens que lhe agarravam cada ombro, pisou ligeiramente de lado para desviar de uma poça d’água no caminho. (Orwell, George. Dentro da baleia e outros ensaios. Trad. José Antonio Arantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 41).
Por que haveria o homem de contornar a poça? Qual o sentido de alguém que vai ser morto por estrangulamento em poucos instantes tomar o cuidado de não molhar os sapatos?
É curioso, mas até aquele momento eu jamais me dera conta do que significa matar um homem saudável e consciente. Quando vi o prisioneiro pisar de lado para desviar da poça d’água, percebi o mistério, a injustiça execrável de interromper uma vida no auge. Aquele homem não estava agonizando, estava tão vivo quanto nós. (Orwell, George. Dentro da baleia e outros ensaios. Trad. José Antonio Arantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 41).
Parece absurdo, não? Eis que não. E sim. O desvio da poça é o detalhe mais importante do relato. Ele faz o escritor ver algo comum a ele e ao condenado, e o absurdo da pena de morte. Mas o desvio da poça também representa uma espécie de mistério insolúvel: quando tudo está perdido, o homem preserva os sapatos. Esse pequeno e breve ato, que poderia facilmente passar despercebido fosse o escritor uma pessoa menos observadora e meticulosa, faz pensar que o humano se mostra no inútil e transforma o relato em algo identificável, ainda que indecifrável. O absurdo reconhecível na cena a torna viva, real. Em um instante é possível imaginar tudo o que o escritor não disse: o dia encoberto, frio e úmido, o homem cabisbaixo, olhos no chão, a atenção ao solo em que pisa, ao controle que lhe resta. Evitar as poças, poupar os sapatos. A sutileza desse absurdo é potente.
O relato é de George Orwell e se encontra no ensaio A hanging, que ele escreveu com base em suas experiências como policial imperial na Birmânia e que foi publicado em 1931. Não se trata, portanto, de ficção. Mas o absurdo sutil na paisagem real composta por Orwell a torna ainda mais real. A arte na ficção, entre outras artes, para mim está ora em fazer ver elementos que estão contidos no real e ainda não se materializaram, ora em construir absurdos sutis em cenas imaginadas para que elas tenham pulsão, vida, verossimilhança.
Agora, vejam.
No meio da rua, o escritor observa a conversa do homem ao telefone. O que lhe chama a atenção é a agitação do homem, os olhos esbugalhados, os gestos de impaciência, raiva, até. Ele grita para a pessoa do outro lado da linha que, não, a terra não é plana. Não, as vacinas não vão transformar as pessoas em misturas de vírus e gente. Não, o vírus não é uma invenção dos chineses. Sim, as mortes são reais. Reais!, berra.
Os absurdos dessa cena não são sutis. A cena é fictícia, mas poderia ser real. E é menos potente do que a do homem condenado que evita a poça. A potência da história da caminhada ao cadafalso está na impossibilidade de o desvio da poça pelo condenado evitar-lhe a morte. Ele não busca adiar a morte em um passo, mas não molhar os sapatos, e a aparente inutilidade do gesto que conforta denuncia o real e deixa ver elementos de transformação que ele contém. Já a saturação da história fictícia está em que a personagem não consegue fazer o outro lado da linha entender que o pior pode ser evitado.
Dito de outro modo, os absurdos do nosso cotidiano andam tão saturados que a segunda cena, ainda que pareça familiar, instaura o enfado. Aquela virada de olhos, aquele suspiro, aquele “ah, não, de novo, não”. Esses absurdos saturados nos trazem problemas. O principal e mais perigoso deles é que debilitam a nossa capacidade de explicar algo para alguém como a pessoa do outro lado da linha usando fatos e lógica. A pessoa do outro lado da linha está presa em um mundo em que se fantasia a realidade como sendo perfeitamente coerente e simples as soluções para problemas complexos. O resgate desse mundo não pode ser feito por meio de um brusco empurrão em direção a outra realidade. Porque a realidade é cheia de absurdos sutis. Querer entregá-la de forma estéril a alguém que cruzou a fronteira rumo à uma imaginação fantasiosa daquele tipo resultará sempre em fracasso.
O que fazer? Como explicar para as pessoas que elas podem adoecer se estiverem desprotegidas na companhia de parentes e amigos contaminados? Como lhes dizer que não é porque alguém é mãe, avô, tia, pai, filha que correm menos perigo de se infectar e assim se tornar mais um elo na cadeia de contágio?
Penso que só temos chance de alcançar algum sucesso nessa empreitada reconhecendo que uma disputa se instaurou nos domínios da imaginação e é preciso encontrar caminho entre o mundo de fantasias dessas pessoas e o mundo de fatos reais e compartilhados em que nos movemos. A ficção tem esse poder. O poder de reduzir a saturação do absurdo e, desse modo, seduzir. Seduzir pela empatia, pela percepção daquilo que é real dentro do espaço da imaginação.
Como mostrar para as pessoas o perigo de se exporem em festas aglomeradas de fim de ano com família e amigos? Não adianta recitar fatos e dados, cartilhas de recomendações, ou enviar vídeos e áudios explicativos. Não adianta explicar. É preciso fazer sentir. Sentir o que pode acontecer com alguém vulnerável, sentir o dano de um ato impensado. Contar uma história. De preferência uma história com absurdas sutilezas.
Pensando assim, eu escrevi não uma coluna, mas um conto para a Revista Época. Pensando assim, fiz esse convite aos leitores:
“Vem, senta aqui comigo. Deixa eu te contar uma história.”