Mania de grandeza
Dois homens com trajetória profissional de sucesso buscam se recolocar no centro do poder
Quando os vemos estão sentados, cada um a seu modo. O senhor dos fartos cabelos brancos tamborila sobre a mesa, o olhar perplexo. De pernas cruzadas e cenho franzido, o outro, de careca reluzente, roça o queixo liso com a mão direita. Não se falam. Há um silêncio carregado na sala de grandes janelas através das quais se vê a exuberância do jardim. Homens importantes, gente de peso, assim se definiam. Um tinha sido ministro, o outro senador. Eram inflados das honrarias passadas, ignorando a autoridade perdida e a inevitável aposentadoria. Pouco antes de os encontrarmos naquele espaço, haviam recebido o aviso.
Fazia algum tempo que tentavam retornar à vida pública, luta ingrata contra a irrelevância da velhice. O país ia de mal a pior, denúncias de corrupção, uso indevido do dinheiro público, inflação, desalento. O povo tinha ido às ruas exigir mudança e os dois viram nas manifestações a chance de uma volta triunfal. Os holofotes, o louvor, o respeito, a deferência, como ansiavam por tudo isso. E, claro, como eram melhores que os outros, qualquer outro, cumpririam a tarefa como ninguém, qualquer tarefa. Tolice pensar que seu tempo tinha passado, que não eram mais motivo de admiração. Não continuavam a ser procurados pelos jornais? Não eram rotulados como os que haviam salvo a nação da desgraça? Parecia tão fácil perpetuar o mito, sobretudo aqui, lugar destituído, terra arrasada, sem educação. Não imaginavam serem esses os obstáculos às suas pretensões. Muito pelo contrário. Não imaginavam que a massa não compreendia o que diziam. Seduzidos pela própria grandeza intelectual, julgavam-se capazes de tudo, até de explorar os desejos de uma população que, para eles, era intraduzível.
Quem eram? Um e outro, um e o mesmo. Fizeram desgraça da vida pessoal em prol do bem público, nada menos. Ambos divorciados mais de uma vez, distantes dos filhos, filhos cujo futuro não fazia jus à herança genética. Menina de um não terminou a faculdade de Direito, tornou-se cantora pop. Filho do outro queria ser escritor, mas não gostava de ler, era de vanguarda. Retrato do que os pais se recusavam a ver: o povo. Armar a volta triunfante, apenas isso importava.
Viram a chance no convite. Viajariam para a capital, seriam recebidos no Congresso com as honras de outrora. Haviam se reunido no limbo onde traçavam estratégias inúteis e sonhavam com a glória, poucos dias antes da partida. O limbo, a sala de janelas com vista para o jardim, tinha sido purgatório por longos anos. Agora talvez se tornasse o paraíso, o reduto da consagração. Claro que não viajariam para a capital de avião comercial. Já estavam velhos demais para aguentar as filas, os atrasos, as cotoveladas de gente que não sabia se comportar em aeroporto, os maus modos de seus conterrâneos cuja melhoria de vida não se deu por mérito. Haviam contratado um jatinho particular, fundos não faltavam, ambos ex-banqueiros bem sucedidos depois do afastamento da vida pública.
Chegaram um pouco atrasados ao aeroporto. O dia não tinha clareado, nuvens pesadas ameaçavam desabar. Talvez devessem ter reconhecido o sinal ominoso. Teria sido o convite um embuste, forma encontrada pelos adversários políticos de os atrair para derrubá-los? O piloto os cumprimentou e informou que a viagem seria turbulenta. Não prestaram atenção, perdidos que estavam nos pensamentos de glória e reconquista, tentando afastar maus pressentimentos. Os jornalistas os receberiam ao pé do jatinho, as manchetes dos jornais no dia seguinte. Como estavam bem vestidos, trajes dignos de chefes de Estado, imponentes, gravatas Hermès. A aeromoça os acompanhou até os assentos, conversavam sem esconder o orgulho. Em poucos minutos o avião estava no ar, entrando nas nuvens.
Uma chacoalhada e ouviram o estrondo, seguido do anúncio: "Senhores, por favor adotem a posição de emergência, cabeça sobre os joelhos. Faremos um pouso forçado". Sequer tiveram tempo para o medo. Tudo o que sabiam era que num instante estavam no avião, no momento seguinte, no limbo, de volta àquela sala onde agora os vemos, calados.
Texto precioso.
Lendo-o em 24/05/2021.
De diferente só não temos o povo indo para as ruas parar as ruas porque o "povo" já "tá" na rua.
Na pandemia surgiu outro povo que foi defenestrado, marginalizado, alijado que se somou ao "povo" que já "tava" na rua.