Casa retomada: sobre conhecimento e entendimento
Neste artigo retorno a Casa tomada, conto de Cortázar, para pensar a relação entre conhecimento e entendimento, importante para que o conhecimento não seja estéril
Gosto de contos. Um dos meus preferidos é Casa tomada, do escritor argentino Julio Cortázar. Está no livro Bestiário, que foi publicado originalmente em 1951 e é o primeiro livro de contos do escritor.
Casa tomada conta a história de dois irmãos, Irene e o Eu narrador, que vivem numa casa imensa, herança de família. Poderia ser ocupada por oito pessoas, confortavelmente. Certo dia, conta-nos o narrador, ele e a irmã escutam ruídos vindos de um lado de casa. Sem dizerem palavra, presumem que se trata de invasores. Fecham as portas que separam os ambientes, e pouco a pouco os ruídos vão se aproximando dos espaços cada vez menores que eles ocupam até que, sentindo que não têm mais alternativa, resolvem deixar a casa. É meia noite. A irmã chora à saída. O narrador a segura pela cintura e, no caminho, joga as chaves num bueiro. Afinal, diz ele, é preciso proteger a casa de gente mal-intencionada, de assaltantes.
Quando criança adorava ler em voz alta. Tenho certeza de que aquilo era chato para quem estava ao meu redor, até porque era frequente. Já eu sentia um prazer estranho em tirar as palavras do papel e ouvi-las no próprio ato de dar-lhes viva voz. Com o tempo, fui deixando de fazer isso, por tarefas, falta de tempo, essas coisas. Mas não abandonei o hábito completamente. Leio em voz alta quando quero aprender alguma coisa, o que é curioso. Curioso porque até criar meu podcast, o Tríplice Fronteira, nunca tinha parado para pensar por que ler artigos técnicos em voz alta era importante para mim. Ler ficção em alto e bom som? Vá lá. Ler a Casa tomada de Cortázar em voz alta é uma viagem porque o conto desperta uma porção de sensações: medo, assombro, ansiedade. As perguntas se precipitam. Quem são os invasores? O que querem? O que buscam? Por que estão ali? Por que o narrador não os confronta? São perigosos. E então o desfecho: o desapego. A casa, o lar dos irmãos, os laços de família e o entrelaçamento das gerações, todo esse passado é deixado porque a urgência do presente os convoca a deixá-lo passar. Não é possível alterar o que está dado, as rupturas são necessárias para abrir espaço ao novo. Enfim, muitas reflexões e interpretações nascem do conto de Cortázar, ainda mais quando tornado palavra viva.
O que isso tem a ver com ciências, que são baseadas na leitura de artigos técnicos? O que há de poético, ou perturbador, ou seja lá o que for a que é preciso dar vida com a própria voz? Mas essas são, afinal, perguntas pertinentes?
Só recentemente me dei conta do que acontece quando lemos em voz alta. Quando lemos em voz alta animamos as palavras. Aquelas letras mortas no papel entram em nós por mais de um dos sentidos e, ao entrarem em nós, elas se reconstroem. É mais ou menos assim: enquanto as palavras estão no papel, passamos os olhos, pensamos, adquirimos um conhecimento que antes não tínhamos. Essa é a parte fácil. Essa é a parte mais fácil. Nesse estágio bruto, sem polimento, o conhecimento é algo para acrescentarmos à lista. Quando precisarmos, ele estará à mão para solucionar problemas práticos e construir problemas a serem analisados, para argumentar e ser usado como contra-argumento a algo que ouvimos, ou mesmo como repetição. A repetição é a pior forma de usar o conhecimento. Sabem por quê? Porque depois de dito tantas vezes do mesmo modo, o conhecimento perde a cor, a vibração, todas aquelas qualidades que um dia o tornaram fascinante. Torna-se dogma e, como tal, obstáculo ao entendimento tanto dos problemas quanto das soluções mais adequadas.
Na economia isso acontece com frequência. A prática é a de repetir até que aquilo que se repete se constitua em dogma. Repete-se que gasto alto causa inflação, repete-se que dívida elevada pode levar o país à falência, repete-se que o país só cresce se determinada receita for seguida à risca. Cansa, não? Eu me canso, mesmo tendo familiaridade com os assuntos, mesmo sabendo que os argumentos são frágeis, mesmo sabendo que podem ser contestados. É tanta repetição que até o gosto de argumentar contra o consenso que se escora na falta de pensamento perde a graça.
Mas como é possível transcender a repetição? É ao mesmo tempo muito fácil e muito difícil fazê-lo. Transcendê-la requer passar do conhecimento que se repete ao entendimento que ganha forma em intercâmbio com o mundo, e isso só se consegue com desapego. Lembram? O desapego do narrador da Casa tomada. Afastar o conforto da repetição requer reconhecer e depois desconhecer a importância do conhecimento, tratar o conhecimento com distância, não deixá-lo se tornar orgulho, ou afagos para o ego. Quando o conhecimento é lido em voz alta, suas virtudes aparecem, sim; mas os questionamentos que o cercam e que ele mesmo suscita, também. Quando começamos a nos perguntar se devemos ou não aceitar aquilo que está escrito, quando pensamos em abandonar a casa tomada pelos invasores da repetição, quando decidimos largar as chaves do conhecimento transmitido para entendê-lo a nosso modo, para transformar aquelas palavras em outras, à nossa maneira, já transcendemos. Estabelecemos uma relação crítica com o que adquirimos dos textos. O que era conhecimento deixou de sê-lo. Antes era conhecimento alheio; agora, é seu: corre nas suas veias, vive dentro de você, está sempre ali para ser moldado como você bem entender.
Então podemos largar as chaves na sarjeta. Não por medo de bandidos, mas porque delas já não precisamos mais.
Quando criança, eu lia em voz alta e fazendo a dublagem dos personagens. Cada um tinha uma voz. Faço isso até hoje, mas mentalmente - não consigo ler de outra forma, mesmo sendo um texto acadêmico.
É assim que reconheço um texto ruim, "não dá pra dublar".
Estou no último ano do curso de ciências econômicas e teus textos fazem com que eu reflita profundamente vários pontos dentro da graduação. Obrigada por compartilhar seu conhecimento.