Campos do Brasil
Neste ensaio reflito sobre os campos em que se divide o Brasil nos dias atuais. Falo sobre bolsonaristas, anti-bolsonaristas e sua relação com o pluralismo
Na pandemia, os sentidos da distância geográfica mudaram com a experiência da proximidade virtual. Esta proximidade tem me permitido ver, às vezes de forma dura e cruel, às vezes com sofrimento e muita tensão, em que o Brasil se transformou social e politicamente. Seria fácil dizer que há o campo bolsonarista e aquele que a ele se opõe. Mas quero propor aqui uma visão um pouco mais nuançada. Elaborando sobre experiências e observação comportamentos e linguagens, formas de apresentação de si e valores, modos de engajamento e silenciamento no debate público, penso que não é essa a constelação de grupos em que se divide a sociedade brasileira atualmente.
Há os bolsonaristas, sem dúvida. Eles possuem uma linguagem própria, e este elemento merece atenção porque, de fato, o bolsonarismo se define menos por uma ideologia que por estratégias de comunicação enraizadas na violência. Ele é asbolutista e excludente. Em uma palavra, é antipluralista. É antipluralista em relação à vida social (vide a sua relação com minorias), na política (vide a ilegitimidade de seus adversários), nos valores (vide seus operadores ‘cidadão de bem’, ‘humanos direitos’, ‘a família brasileira’) e no plano das ideias. Falas bolsonaristas, a começar pelas do presidente, deixam ver sua inscrição em práticas patriarcais longamente constituídas e de viés colonialista, como se nota em sua relação com povos indígenas e a mineração. Seu tipo ideal é ‘o homem de bem’, que é o homem heterossexual, branco, que expressa a força, em presença ou em potência. Força bruta.
O anti-bolsonarismo é pluralista. Como faz pensar a própria palavra, o pluralismo é, ao mesmo tempo, fragmentado e inclusivo. O antirracismo, o feminismo e sua luta mais que secular no Brasil pelos direitos das mulheres, a igualdade de todos os seres independentemente de gênero ou orientação sexual, o rechaço à desigualdade e a contestação de uma democracia universal na forma, mas restrita na vida, em que negros e pobres são tratados como não-cidadãos, ou cidadãos de segunda classe. O pluralismo percebe o traço autoritário no absoluto, na operação de uma lógica que instrumentaliza a razão em causa própria e a cerceia. Ser pluralista é deixar-se aberto ao mundo real, aos conflitos trazidos pela abertura ao real, os questionamentos dos pressupostos, de tudo aquilo que parecia firmemente estabelecido por força da realidade. Essa abertura é antagônica ao que é estático, ao que não é fluido e transiente.
Esse antagonismo ficou mais evidente na pandemia, evento inédito e, que, por seu ineditismo, não permite que se permaneça preso a pressupostos, conhecimentos estabelecidos, ou ordenações construídas a partir de experiências passadas. A pandemia fez ver. Fez ver o tamanho da desigualdade, a inadequação da política econômica, o desconhecimento científico da população, o sofrimento, a vida e a morte. Esses aspectos da realidade brasileira ficaram tão visíveis, tão despidos de construções e fantasias que o imponderável – para o campo pluralista – passou a ser não aceitar que o mundo não fosse visto. Que determinados grupos da sociedade se recusassem a vê-lo.
Eis, portanto, outro ponto de fratura da sociedade brasileira. Não há apenas o antipluralismo expresso por bolsonaristas e o pluralismo defendido por anti-bolsonaristas. Há, além desses, o grupo formado por pessoas que se declaram anti-bolsonaristas, mas, ao encontro com o real, preferem agarrar-se a um conhecimento estabelecido, mantendo intactos os seus pressupostos, a deixar-se atravessar e reexaminá-los. É o que chamo, hoje, de relação absolutista com a racionalidade, que faz certa razão aparecer como antipluralista. Não é que esses atores políticos não percebam a importância das causas do pluralismo, nem que não as abracem. Minha questão é que o antipluralismo de algumas de suas práticas, sobretudo quando se trata de especialistas na relação com o público, tornam-nas compatíveis com o bolsonarismo.
Na economia, mas não só, os anti-anti – anti-Bolsonaristas e absolutistas da razão – estão expostos. São pessoas bem intencionadas, de diferentes gerações, que defendem causas justas, como a renda básica, a redução da pobreza e das desigualdades, mas que ao mesmo tempo não rejeitam a ideia de que defendê-las pode implicar abrir mão de certas crenças e pressupostos. O pressuposto mais comum, proveniente do conhecimento estabelecido a partir, inclusive, de experiências passadas do Brasil, é o de que a responsabilidade fiscal é, no limite, um valor inegociável em qualquer hipótese, ou seja, é inegociável a despeito de a realidade exigir sua revisão, em uma crise humanitária que nos coloca diante da escolha entre fazer viver ou deixar morrer, com um governo que atua por ação e omissão para deixar morrer e fazer morrer, para pensar com Michel Foucault. No mundo dos anti-anti, a defesa da igualdade de acesso e o inevitável choque com aquilo que consideram fiscalmente responsável estão em planos distintos, correm em paralelo. Mas a realidade do mundo em que vivemos não permite que se opere o raciocínio em planos paralelos. Ao contrário, ela os coloca em rota de colisão: ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se pretende fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento absolutista com os bolsonaristas. Na economia, os anti-anti respaldam o governo que dizem repudiar.
Tal absolutismo é difuso. Não por acaso algo semelhante ocorre na discussão sobre ciências. É comum divulgadores científicos anti-bolsonaristas apresentarem uma visão absolutista da ciência. E nada disso equivale a dizer que a ciência é relativizável, pois não é. O que quero dizer é que a partir do momento em que se pretende alçar a ciência ao status de neutralidade, ela é removida do mundo real e passa a habitar o mundo construído por esses articuladores. A ciência não pode ser neutra, posto que está inserida na realidade. Essa realidade possui articulações políticas e sociais que a moldam não nos seus aspectos estruturais, mas nos seus pilares de interação com a sociedade. A ciência comunicada é, assim, política, pois não há comunicação sem política. O absolutismo que marca os defensores da neutralidade científica é, ele próprio, um respaldo ao autoritarismo bolsonarista.
No jornalismo opinativo – nos editoriais ou nas colunas de opinião – essa construção de um mundo que não tem relação com a realidade está igualmente presente. Constroem-se argumentos para sustentar essa ou aquela tese com base em uma dissociação da realidade. Temas que tentam reconstituir uma realidade que deixou de ser com a pandemia e seu ineditismo dão a tônica aos veículos de comunicação. Eles aceitam de bom grado o absolutismo econômico, científico, ou seja lá qual for, casado com uma opinião contra o governo, contra o presidente da República. É uma imprensa que se permite descolar-se do mundo real para habitar esse outro construído que valida o bolsonarismo sem querer fazê-lo, e assim acaba sendo anti-anti pelo que deixa ver, pelo que faz não ver.
Eis a tragédia do Brasil atual: atores importantes da sociedade não enxergam em suas construções e atitudes pontes para a perpetuação do autoritarismo, do antipluralismo bolsonarista. Esses grupos preferem atacar de forma insidiosa ou direta aqueles que estão com os pés na realidade, tentando dar conta de refletir sobre um mundo repleto de fraturas, de descontinuidades, que requer novas ideias e o livre pensar, o que Hannah Arendt chamou de pensar sem corrimão: preferem tudo isso a enxergar insuficiências e inadequações de um conhecimento que nos foi legado. No limite, e nós nos encontramos em alguns limites, tornam-se facilitadores, conscientes ou desavisados, da franca decadência moral que marca um país que se recusa a chorar pelos seus mortos, seus doentes, seus destituídos.
Esses economistas comentaristas, ou seja lá o que for, só são pessoas egoístas que conhecem a realidade, mas ela é do outro e o outro não os interessa.