A quebra de patentes não é panaceia
Neste artigo analiso por que a quebra de patentes das vacinas contra Covid-19 não é uma panaceia para a escassez global dos imunizantes
No último dia 5 de maio, o governo Biden anunciou a intenção de apoiar, junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), esforços liderados por África do Sul e Índia para permitir a quebra de patentes das vacinas contra Covid-19 produzidas nos EUA, tais como a da Pfizer, da Moderna e da Johnson&Johnson, e para possibilitar a transferência de propriedade intelectual. A decisão, celebrada pelo diretor geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Thedros Ghebreyesus, é tomada na esteira de uma bem sucedida campanha de imunização no país e do acerto dos Estados Unidos em investir pesadamente na aceleração do desenvolvimento de imunizantes por conglomerados farmacêuticos, no âmbito da Operação Warp Speed.
No Brasil, a decisão do governo Biden parece ter causado um misto de espanto e euforia. De fato, a posição é inédita, mas não chega a ser uma surpresa quando se considera a chamada geopolítica das vacinas. Como já disse em um podcast no início de fevereiro de 2021, a ausência dos Estados Unidos na distribuição global de vacinas estava abrindo caminho para que China, Índia e Rússia obtivessem vantagens geopolíticas e econômicas expressivas ao suprirem países emergentes e mais pobres, nos quais a falta de doses é uma ameaça ao controle da pandemia. A julgar pela posição que os Estados Unidos assumiram junto à OMC nesse início de maio, não tardou para que o governo Biden percebesse que a liderança e os interesses geopolíticos norte-americanos estavam em jogo, podendo ser comprometidos caso o país não se posicionasse a respeito das patentes e da propriedade intelectual.
A pandemia de Covid-19 lançou luz sobre uma série de aspectos da vida política local, nacional e global. Entre eles está a importância de que os países tenham capacidade de produzir vacinas internamente, e a quebra de patentes, atrelada à transferência de propriedade intelectual, é um passo nessa direção. Ele não autoriza a acreditar, no entanto, que se trate de uma panaceia. O processo de quebra de patentes não é rápido, nem os países haverão de se tornar capazes de produzir as vacinas mais sofisticadas da noite para o dia. No restante desse texto vou me ater aos argumentos que sustentam não ser o anúncio dos Estados Unidos na OMC a bala de prata que entregará vacinas ao mundo.
São dois os argumentos principais. Um se baseia no que sabemos sobre a estrutura da proteína Spike, o alvo principal de muitas vacinas; o outro é uma explicação econômica sobre as cadeias de produção de imunizantes. A proteína Spike tem uma topologia própria, por assim dizer. Ela apresenta uma série de protuberâncias em sua superfície, as quais se denominam de epítopos. Os epítopos são importantes porque a proteína possui duas conformações: o formato pré-fusão e o pós-fusão. No formato pós-fusão, ela se retorce e “esconde” vários epítopos que nossos anticorpos conseguem identificar para fins de neutralização viral. Na versão pré-fusão, a topologia original, repleta de epítopos que nossos anticorpos reconhecem, a Spike suscita uma maior resposta imunológica. Dito de outro modo, a versão pré-fusão da proteína viral é mais imunogênica do que o seu formato pós-fusão. As vacinas gênicas, como a da Pfizer-BioNTech e a da Moderna, foram produzidas a partir de uma tecnologia capaz de estabilizar a proteína Spike na conformação pré-fusão. Além disso, como moléculas de RNAm são facilmente degradáveis, as duas vacinas as envolvem em nanolipídios – partículas de gordura com alto grau de especificidade – para que o RNAm chegue às nossas células.
Mesmo uma apresentação assim sucinta de dois processos complexos, o natural e o tecnológico, deve dar uma ideia de que a solução para a falta de vacinas em escala global não é fácil. Não se trata simplesmente de os países terem acesso a uma espécie de receita. Para que possam produzir essas vacinas, eles precisam de capacidade laboratorial não só extremamente sofisticada, mas em escala. Vários países de renda média ou mais pobres não têm a capacidade necessária para a produção interna dessas vacinas. E, ainda que a possuíssem, encontrariam outro problema, de ordem econômica.
Em Economic policy for a pandemic age, livro digital que organizei com Maurice Obstfeld e Adam Posen e que foi publicado pelo Peterson Institute for International Economics, mostramos como são intrincadas e globais as cadeias de produção de vacinas. Nenhum país, hoje, consegue produzir sozinho qualquer que seja das vacinas em uso, e a lista inclui os Estados Unidos. Os insumos para a fabricação de uma vacina, sejam reagentes químicos, biorreatores ou outros equipamentos, são importados de vários países. Logo, se algum desses países decidir, por exemplo, limitar as exportações de insumos para as vacinas, elos importantes das cadeias de produção são quebrados. Já vimos isso acontecer ao longo de toda a pandemia para diversas vacinas, como a da AstraZeneca.
A suspensão de patentes e a transferência de propriedade intelectual nada fazem para evitar que países decidam romper elos da cadeia de produção. A única forma de manter a integridade dessas cadeias é a elaboração de um acordo global que garanta o suprimento de tudo o que é necessário para a fabricação de imunizantes. As linhas gerais do que poderia constituir esse acordo foram elaboradas no capítulo 10 do livro mencionado acima.
A decisão recente dos Estados Unidos é importante pelo potencial de fazer avançar a distribuição global de vacinas. Contudo, para que atinjamos o objetivo de suprir vacinas para todos, não basta quebrar patentes. A discussão é complexa demais para o oba-oba que se vê.
Pessoas mortas ou doentes não consomem, não viajam, não compram livros...
Mônica, como ficaria o estímulo à pesquisa por parte das empresas privadas, se elas perderem
patentes?